“As plataformas se veem como um tipo de serviço público neutro, como um veículo para a liberdade de expressão, o que não são”

Entrevista com Nandini Jammi, por Juliano Borges e Arthur Coelho Bezerra

16 de outubro de 2020

Com o objetivo de levantar informações para um artigo que irá compor o dossiê sobre economia política da desinformação, a ser publicado em 2021 pela revista Eptic, os pesquisadores Juliano Borges e Arthur Coelho Bezerra, do grupo de pesquisa Escritos, entrevistaram a cocriadora do movimento Sleeping Giants nos Estados Unidos, Nandini Jammi, no dia 16 de outubro de 2020.

Em sua página oficial na internet, Nandini é descrita como palestrante, ativista e consultora de segurança de marca e moderação de conteúdo. Afirma estar imersa nesse mundo desde 2016, quando começa a administrar anonimamente a destacada campanha em redes sociais Sleeping Giants, que obtém sucesso ao incentivar anunciantes a bloquear a compra de espaço publicitário em perfis e websites de conteúdo extremista.

Logo no início da entrevista, Jammi deixa claro que não faz mais parte do Sleeping Giants e que, portanto, não fala em nome” do grupo, embora possa falar sobre ele. Ela explica como a iniciativa tem início mirando no site de desinformação Breitbart News, e evolui para um movimento cívico digital que passa a contar com o trabalho colaborativo de voluntários desconhecidos, incluindo a criação espontânea de células em países como Canadá, França e Brasil.

 

Nesta entrevista, Jammi aborda a publicidade programática, discute a tática encontrada por Sleeping Giants para desmonetizar sites desinformativos e se posiciona sobre a responsabilidade das plataformas na contenção de discursos de ódio e de desinformação na internet.

 

Como o Sleeping Giants começou e por que vocês escolheram esse nome?

Foi o meu parceiro no Sleeping Giants, Matt [Rivitz], quem começou a conta. Foi ele quem escolheu o nome. Para mim, quando as pessoas perguntam quem são os Sleeping Giants, minha interpretação é que os gigantes somos nós, os consumidores e os seguidores desta comunidade, que somos capazes de exercer uma quantidade incrível de poder e de influência quando nos manifestamos nas redes sociais.

Matt começou uma semana antes de mim. Mas, efetivamente, tivemos essa ideia de forma independente. Nós dois visitamos este site, o Breitbart[1] [News], e a primeira coisa que notamos foram os anúncios, porque ambos trabalhamos com marketing. E, como nós temos uma ideia sobre como funciona a publicidade programática, sabíamos que essas empresas não estavam colocando os anúncios ali propositalmente. Mas o Google e o Facebook estão fazendo isso por eles. Pensamos que, se alertássemos as empresas que seus anúncios estão neste tipo de site, elas provavelmente iriam agir e bloqueá-los. Imaginamos que isso ocorreria porque muitas dessas empresas investem em mensagens e valores que são o oposto do que Breitbart representa. Então, começamos a entrar em contato com essas empresas nas redes sociais, porque é o caminho mais rápido, é público e esperávamos obter uma resposta rápida delas. Capturamos a tela do anúncio ao lado de algumas dessas manchetes, enviamos uma mensagem ou tweetamos para a empresa e pedimos educadamente que reconsiderassem sua compra de mídia com a Breitbart. O motivo pelo qual geralmente formulamos isso como uma questão ou como um pedido é porque sabíamos que essas marcas e equipes de marketing não tinham conhecimento que seus anúncios estavam aparecendo no site. O Google está colocando muitos anúncios na web e eles não estão verificando exatamente para onde esses anúncios estão indo. Fomos nós que alertamos as empresas, dando a elas a chance de responder.

 

Havia outras pessoas trabalhando com vocês no Sleeping Giants? Tomava muito do tempo administrar a conta?

Tomava muito tempo. Eu dirigia o Facebook, Matt dirigia o Twitter e imediatamente tivemos um punhado de voluntários que se juntaram a nós. Ao longo de toda a campanha, outras pessoas ingressaram e ajudaram de muitas maneiras diferentes. Mas, no que diz respeito a administrar as comunidades, éramos principalmente nós dois, pelo que eu sei. Os voluntários (somos todos voluntários, aliás) atualizam a lista de confirmações, fazem pesquisas, apontam coisas, encontram informações para nós. Alguém fez uma espécie de repositório inteiro da seção de comentários do Breitbart, o que também é extremamente custoso, e há anos documenta o que está acontecendo nos comentários. Então, as pessoas acabam ajudando em tudo que podem.

 

O que observamos em suas ações é que Sleeping Giants não promove um boicote a marcas. Como vocês criaram essa tática?

Essa foi uma direção natural para nós desde o início, pois qual é o sentido de boicotar uma empresa que não sabia que seus anúncios estavam neste site, e que está disposta a agir imediatamente? Seria um exagero, não há necessidade de espernear, criar todo esse trabalho e drama adicionais. E essa tática também dilui o conceito de boicote, que requer esforços sustentados das pessoas em manter seu apoio contra uma empresa, marca ou produto. Essas empresas nos respondem em minutos ou horas, então, por que boicotá-las? Seria ridículo. Depois que começamos a ter como alvo a Fox News e Bill O'Reilly[2], continuamos com a mesma tática, apenas fazendo uma pergunta: essa pessoa ou as palavras dessa pessoa ou esse tipo de organização está de acordo com os valores da sua empresa? Essa pergunta é tão poderosa que, até mesmo para programas de TV, a tática funcionou. Uma marca não quer estar numa posição que possa prejudicar todos os outros trabalhos de marketing.

 

Temos percebido reações hostis do público às marcas sinalizadas no Brasil. O público reconheceu que não era um apelo ao boicote às marcas?

Como não há outra palavra para a nossa campanha, na mídia [dos Estados Unidos] ela foi descrita como um boicote. Nós a chamaríamos de campanha de responsabilidade corporativa. As marcas que contactamos entenderam como uma ameaça, como se uma campanha nas redes sociais viesse para atingi-los e prejudicar seus parceiros, sua marca e seu marketing. Eu só soube disso com o tempo, naquela época eu não tinha nenhuma ideia de como as marcas pensavam por dentro. Mas agora sim, porque conversei com elas  e percebi que não viam exatamente como um boicote, porque não é, nunca ameaçamos com esse tipo de coisa, nunca. Mas elas entenderam como se Sleeping Giants pudessem causar-lhes problemas.

 

No Brasil, houve muita pressão da extrema direita para boicotar empresas que cancelassem os anúncios. A reação da extrema direita brasileira também apareceu na busca por formas alternativas de financiamento, como o uso de bitcoins ou de plataformas de financiamento coletivo. Como isso se deu nos EUA?

Breitbart é uma organização de mídia que ganha muito dinheiro com sua loja virtual de mercadorias. No que diz respeito aos grupos extremistas, eles têm usado [sites de serviços financeiros como] PayPal, Cash up, Stripe... Nós conseguimos tirá-los de vários desses sites e, então, eles mudam para outros processadores de pagamento e bancos, em geral, menos conhecidos. Eles ainda conseguem receber pagamentos com cartão de crédito, mas tornamos isso muito mais difícil.

O PayPal deixou muito claro em suas mensagens, após os ataques a Charlottesville[3], que eles não farão parceria com quaisquer organizações ou indivíduos que estejam alimentando o ódio racial ou violência. Não é mais a linguagem que vimos anos atrás, quando diziam apenas “se for ilegal nós não vamos trabalhar com eles. Se estiverem provocando violência direta, não vamos trabalhar com eles”. Agora estão usando “alimentar o ódio racial”. No geral, o PayPal tem sido, pelo menos em termos de mensagens, muito mais pró-ativo. Não consigo ainda ver isso em suas ações, mas sei que [Olavo de] Carvalho acabou de ser expulso do PayPal. Então, as pressões parecem estar funcionando.

 

Em relação às plataformas, o tom foi diferente do que com as marcas, com uma abordagem mais direta e acusatória. Como foi a decisão de se direcionar às plataformas?

As plataformas têm políticas de uso aceitável, como o Shopify, em que afirmam que não vão trabalhar com pessoas que vendem produtos racistas em suas lojas. Mas quando sinalizamos essa ocorrência, elas não fazem nada a respeito. Então, qual é o sentido das políticas de uso aceitável se elas não vão ser aplicadas? É por isso que adotamos um tom diferente com as plataformas de tecnologia, porque elas têm o poder de expulsar qualquer pessoa de suas contas. Quando você assina seus termos e condições, elas podem encerrar sua conta sem motivo. Claro, a plataforma não quer encerrar sem motivo; não quer ser a empresa que apenas fecha contas, essa não é uma boa maneira de fazer negócios. É necessário ter um motivo para fazer isso. É aí que entra em vigor a política de uso aceitável. As plataformas podem dizer “nós verificamos que sua atividade representa uma violação contra nossa política de uso. Desculpe, vamos ter que encerrar sua conta”. A razão pela qual não fazem isso é porque as plataformas se veem como um tipo de serviço público neutro, como um veículo para a liberdade de expressão, o que, é claro, não são.

Outra consequência é que elas também se colocam como tendo que ser objetivas nas suas decisões: “se expulsarmos essa pessoa, isso não significaria expor o nosso viés?”. Claro, isso não é verdade. As políticas de uso aceitável são tendenciosamente contra a violência e é aceitável que sejam tendenciosas também contra o racismo; afinal, é preciso fazer julgamentos para viver em sociedade. A motivação para isso pode ser porque as plataformas têm que operar em grande escala e entendem que não é sua responsabilidade saber quem são seus clientes. Francamente, elas não sabem como tomar  decisões e receber potenciais críticas públicas, que, é claro, poderiam mitigar imediatamente sendo comunicativas e transparentes sobre seu processo de revisão.

 

Não é possível presumir que as plataformas apenas não querem se envolver nisso? Que elas não querem encerrar contas porque isso é realmente lucrativo?

Não é lucrativo imediatamente. É lucrativo em termos de valor de marca a longo prazo. Vou dar um exemplo: recentemente, consegui que uma empresa chamada Hotjar bloqueasse anúncios para a campanha de Trump. Esta é uma empresa de tecnologia, eles se consideram neutros e afirmam que apenas fazem análises para sites. Encontrei o código deles no site das campanhas do Trump, chamei-os no Twitter e eles responderam dizendo “somos uma organização antirracista, nos consideramos antirracistas, mas infelizmente Trump é apenas um candidato político. Não tomamos decisões políticas aqui”. Bem, então como você pode dizer que é antirracista? Se você está fazendo isso em seu marketing e diz que é antirracista, é melhor ser consistente. Portanto, pare de se dizer antirracista ou proíba a campanha de Trump.

Essa empresa em particular é incomum. Pensaram sobre isso e decidiram banir a campanha de Trump. E então, fizeram uma postagem inteira no blog onde explicaram sua decisão. No tweet original, onde eles anunciaram sua decisão, os comentários são 99% positivos, porque eles sabem quem são seus clientes. E, no final das contas, essas são as pessoas que continuarão a recomendá-los aos amigos.

 

Como você vê as iniciativas recentes que buscam produzir regulamentações mais rígidas ou diferentes formas de controle social nas plataformas?

Eu tenho algumas ideias sobre isso. A primeira é: o Twitter censurou recentemente um conteúdo do New York Post[4], e isso perturba a todos, independentemente da filiação política, porque o Twitter fez algo drástico sem comunicar seu processo por trás disso. É chocante porque todos nós dependemos do Twitter para obter informações e, de repente, as informações estão apenas sendo tiradas de nós.

Então, esse é um argumento para não necessariamente regulamentar o conteúdo, ou forçar as empresas a regulamentar o conteúdo de uma certa forma em sua plataforma. Mas para forçá-las a incluir algum tipo de processo de revisão transparente onde se possa apelar e entender o que está acontecendo na plataforma. Isso também reduz muito os riscos para as próprias empresas, porque elas têm medo de tomar decisões e serem criticadas por isso. Mas, se as plataformas puderem fazer o dever de casa e nos mostrar como chegaram a determinada decisão, então, pelo menos, podemos ter uma conversa a respeito, e não estaríamos cegos nessa relação.

Além disso há o Conselho de Supervisão do Facebook[5] que acho realmente eficaz e vejo que está incomodando os funcionários do Facebook. Eles acham isso muito irritante porque permite que cidadãos assumam o controle da narrativa que o Facebook está constantemente tentando construir em seu favor. O comitê pode se comprometer com um processo transparente de uma forma que o Facebook não consegue. Então, em quem você vai confiar mais? No comitê, porque é ele que está analisando esses casos. Quando o comitê se envolve nessa discussão, isso lhe dá poder sobre o Facebook. Não sei o que está de fato acontecendo dentro do Facebook, mas acredito que isso esteja tendo um efeito real na empresa, e acredito que eles estão começando a acelerar algumas de suas próprias decisões como resultado.

 

Vimos que a extrema direita brasileira respondeu convocando uma campanha de boicote contra as marcas que decidiram cancelar os anúncios. Como as marcas reagem ao se colocarem entre os dois lados de uma opinião pública tão polarizada?

Nunca houve uma ameaça séria para qualquer empresa que deixou a Breitbart. Pelo menos nos Estados Unidos, não há real poder econômico para um grupo de clientes, pessoas ou públicos que apoiam os valores do Breitbart. E as marcas gastam muito dinheiro fazendo propaganda de si mesmas como inclusivas, investem em marketing para recrutamento de funcionários e para desenvolver um local de trabalho mais inclusivo. Então, simplesmente não há possibilidade de caírem nesse tipo de pressão de grupos da extrema direita.

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Notas

[1] Site de tipo noticioso controlado à época por Steve Bannon, diretor-executivo da campanha eleitoral de Donald Trump e principal responsável por sua comunicação. Após a vitória de Trump, Bannon foi nomeado membro no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O Breitbart News segue sendo uma referência informativa importante no campo conservador estadunidense.

[2]Bill O'Reilly foi apresentador do programa The O'Reilly Factor, da Fox News, demitido em abril de 2017 após denúncias de assédio sexual envolvendo funcionárias da emissora.

[3]Ataque ocorrido em 12 de agosto de 2017 quando o supremacista James Alex Fields Jr. premeditadamente avançou com seu carro contra uma multidão que protestava pacificamente contra o comício Unite the Right em Charlottesville, Virginia, matando um e ferindo 19 pessoas.

[4]Em 14 de outubro de 2020, Facebook e Twitter reduziram o alcance da distribuição de uma matéria contra o candidato democrata Joe Biden publicada pelo tabloide sensacionalista New York Post, que pertence à News Corp, mesma holding da Fox News. Os republicanos acusaram as empresas de censura e de intromissão no processo eleitoral. O Twitter alegou que a rede social não permitia a circulação de informações hackeadas, mas voltou atrás no dia seguinte e admitiu a distribuição da reportagem com os tweets marcados informando que a origem da informação era suspeita.

[5]O Conselho de Supervisão é um órgão de moderação do Facebook proposto para analisar recursos para conteúdos bloqueados ou removidos da rede social e do Instagram (ficam de fora o Whatsapp e todos os outros serviços do Facebook). No entanto, o comitê não é independente para estabelecer precedentes, não pode obrigar o Facebook a acatar suas recomendações e também não pode alterar seu próprio estatuto sem a aprovação pela própria empresa. O comitê é composto no momento por 20 membros de 16 países, anunciados em maio de 2020, quase dois anos depois de ser proposto por Mark Zuckerberg. (https://about.fb.com/wp-content/uploads/2020/01/530amBylawsTranscript.pdf)

 

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Publicado em 11 de novembro de 2020.