Por Rodrigo Bessa
É comum lermos relatos de que a internet, ao tornar a informação mais disponível e permitir que seus usuários pudessem criar e compartilhar conteúdos, tornaria a nossa sociedade mais politizada, democrática, informada e racional. Seríamos membros de uma grande aldeia global. Mas o que é ser um “cidadão do mundo” e quais implicações aparecem na dualidade local x global?
Certa vez um homem foi perguntado de onde vinha, e respondeu: “Eu sou um cidadão do mundo (Kosmopolitês)”. Este homem era o filósofo cínico Diógenes de Sinope (404-323 a.C.). Ao que parece, ele foi o primeiro filósofo ocidental a se identificar usando esse neologismo. Na época, por costume, a identidade de cada um era baseada em seu local de nascimento. Diógenes rompe, portanto, com o conceito de cidadania de então e cria um novo termo, no qual o conceito de cidade (polis) está relacionado ao de universo (kosmos). Kosmos é a verdadeira polis original, o local de nascimento de todos. As leis (nomos) e os costumes (ethos) da polis devem ser secundários em relação às leis do kosmos. Diógenes abre caminho para um questionamento sobre a distinção entre gregos e bárbaros, já que todos os seres humanos são cidadãos do kosmos, portanto do mundo compartilhado.
No artigo "Cidadania na era digital", o filósofo da informação Rafael Capurro nos lembra que o conceito de cidadão do mundo é um conceito central do iluminismo. E o conceito de kosmopolitês encontra eco no conceito de “cidadania mundial” (Weltbürgertum), de Immanuel Kant.
Kant alarga suas ideias sobre o assunto no trabalho intitulado “Paz perpétua: um projeto filosófico”. De acordo com o filósofo alemão, a paz perpétua só pode ser alcançada se três preceitos forem realizados, sendo um deles “o direito de cidadania mundial ser limitado às condições de hospitalidade universal”. Nas palavras de Kant, citadas por Capurro em seu artigo, hospitalidade é o “direito de um estranho não ser tratado como um inimigo quando ele chega na terra do outro. Pode-se se recusar a recebê-lo se isto puder ser feito sem causar a sua destruição; mas, desde que ele ocupe pacificamente o seu lugar, não se pode tratá-lo com hostilidade. [...] em virtude de sua posse comum da superfície da terra, onde, como um globo, eles não podem infinitamente se dispersar e, portanto, devem finalmente tolerar a presença uma do outro”.
Dito de outra maneira, o sujeito cosmopolita de Kant é livre para visitar outras nações e culturas e conhecer outras pessoas com base no fato de que todos partilhamos um pouco de terra sobre a qual existimos.
De certa forma podemos ver os relfexos dos pensamentos de Diógenes e Kant sobre o cosmopolitismo na criação da Organização das Nações Unidas (ONU), na Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Direito Internacional e suas instituições correspondentes. Tais organizações e inciativas buscam diferentes tipos de respostas para desafios globais como a crise ambiental e a crise do capitalismo, as guerras religiosas, crimes contra a humanidade, etc.. A grande novidade para o cosmopolitismo de Kant, para além da ascensão da mídia de massa, é o advento da internet.
Os processos sociais na internet atravessam as fronteiras dos Estados-nação e dos grupos internacionais de Estados que se mantêm como as bases da ideia política moderna de cidadania. Como adverte Capurro, o mundo cibernético não é um tipo de mundo independente:
"Os direitos e deveres no mundo cibernético não podem ser isolados dos direitos e deveres no mundo físico. O cibermundo torna possíveis processos de hibridização cultural e interação social tanto quanto de isolamento mútuo. O caso da Agência de Segurança Nacional fornece a evidência da cidadania digital global transformando-se em vigilância global, sob a premissa paradoxal de que, no momento em que todos os cidadãos digitais devem ser considerados iguais no que diz respeito aos direitos e deveres, são separados em cidadãos norte-americanos, que segundo a lei norte-americana, não devem ser objetos de vigilância digital, e do resto do mundo, sem consideração pelas leis de seus países. A partir dessa perspectiva, o conceito de cidadania digital global se transforma no oposto dos ideais do Iluminismo. O perigo de homogeneização da população mundial não consiste apenas em seu controle e manipulação, mas também na exclusão de diferentes grupos e, de modo mais geral, na falta de respeito às diferenças culturais, histórias individuais e contingências que são a base para a singularidade e riqueza de indivíduos e sociedades humanas”.
Esse cenário aponta para a urgência de, na presente era digital, encontrarmos um ethos transcultural com componentes democráticos que promovam ativamente a experiência intercultural, bem como um tratado internacional para o mundo cibernético. Nesse sentido, são fundamentais as pesquisas acadêmicas sobre Ética Intercultural da Informação (EII), campo de estudos dedicado à análise das diferenças culturais e as regras de comportamento no mundo físico e no digital.
Baseado no artigo de Rafael Capurro intitulado “Cidadania na era digital”, traduzido por Marco Schneider e Arthur Bezerra (integrantes do Escritos) para o livro "Comunicação, Cultura, Informação e Democracia: tensões e contradições", organizado por Adilson Cabral e Eula Cabral (Editora Media XXI, 2016).
Publicado em 10 de junho de 2019.