Filtragem de Fake News: uma faca de dois gumes

Por Arthur Bezerra

Em reação às propostas de criação de mecanismos de filtragem de notícias falsas no Facebook, uma coalizão da direita brasileira enviou uma carta ao senador norte-americano Ted Cruz, que ficou conhecido como o candidato “à direita de Trump” durante a disputa pela pré-candidatura à presidência do Partido Republicano em 2016.

Há poucas semanas, no cargo de senador, Cruz proferiu um dos mais agressivos questionamentos a Mark Zuckerberg durante seu depoimento ao congresso norte-americano, por conta do escândalo envolvendo o uso de dados privados de usuários da rede social em diversas campanhas eleitorais pela companhia Cambridge Analytica. Na ocasião, o republicano afirmou que “há muitos norte-americanos profundamente preocupados com o fato do Facebook e outras empresas de tecnologia estarem engajadas em um padrão generalizado de preconceito e censura política”, citando, em seguida, nomes de páginas conservadoras cujos conteúdos teriam sido retirados da rede.

A carta enviada a Cruz, assinada por “líderes e amigos dos principais movimentos populares de direita, conservadores e liberais no Brasil”, eleva o tom das acusações, valendo-se da conhecida retórica de chamar todos – mídia, magistrados, agências de notícias e o próprio Facebook – de “esquerda”:

“é lamentável que o Facebook tomou definitivamente o lado da mídia esquerdista, e ao lado de magistrados "de esquerda" do Tribunal Superior Eleitoral - correspondente à Comissão Eleitoral Federal nos Estados Unidos -, anunciou uma parceira com duas agências de "checagem de fatos" - chamadas de "Lupa" e "Aos Fatos" - ambas controladas por jornalistas contaminados por um forte viés ideológico de esquerda, tudo com o propósito de reduzir o alcance ou retirar funções de páginas no Facebook apenas por serem arbitrariamente denunciadas como espalhadoras das chamadas "Fake News".”

Embora cause estranheza o fato de liberais patriotas brasileiros pedirem o apoio a um político norte-americano contra a liberdade de ação de uma empresa capitalista, devemos concordar que as regras precisam ser discutidas e destacar que tal debate precisa contar com a participação não só de governos, mas também da sociedade.

No ano passado, publicamos um texto que trazia o mesmo questionamento, porém a partir da perspectiva de censura de um espectro político diametralmente oposto ao citado. Transcrevemos o texto em questão abaixo.

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A ampla disseminação de notícias falsas na internet, seja de maneira não intencional por pessoas aleatórias ou por meio de contas automatizadas – os chamados bots – programadas com interesses específicos, é sem dúvida uma questão social que merece a atenção de nosso sistema jurídico. O problema é que há duas questões sensíveis nesse ordenamento jurídico: uma delas diz respeito à responsabilização e punição dos apontados como responsáveis; a outra, em relação à forma como a filtragem e bloqueio de tais mensagens deve ser feita.

Em relação à primeira questão, o projeto de lei 7.604, proposto pelo deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) em 2017, responsabiliza provedores de conteúdo de redes sociais (como Twitter e Facebook) pelas notícias falsas que circulam em suas plataformas, ferindo o princípio de inimputabilidade que, assim como a privacidade e a neutralidade na rede, é uma das principais conquistas do Marco Civil. É compreensível que as empresas precisam ter alguma responsabilidade sobre o conteúdo que hospedam – e não à toa, no segundo artigo do mesmo PL lê-se que “os provedores deverão criar filtros e ferramentas na organização de suas atividades, para impedirem e restringirem a veiculação de informações falsas, ilegais ou prejudicialmente incompletas, estabelecendo regras que definam o que pode ser exibido em sua plataforma”.

Aí reside o segundo problema: ao imputar aos provedores a responsabilidade de criar mecanismos de filtragem, com o aparentemente justo intuito de impedir que sejam multadas, as gigantes corporações que controlam as principais plataformas comerciais da internet ganham o aval para projetar algoritmos que escondam certo conteúdo e mostrem outro. Abre-se aí uma gigante brecha para a censura e bloqueio de páginas com conteúdo dissidente, contra-hegemônico ou que de alguma maneira vá contra os interesses da empresa responsável pelas plataformas nas quais essas notícias circulam.

Um bom exemplo disso é a campanha que vem sido movida desde julho de 2017 pelo World Socialist Website contra os algoritmos de busca da Google, acusados, com base em um exame atento do tráfego de dados na rede, de manipular os resultados de suas buscas para bloquear o acesso ao WSWS. Em carta aberta a Google, David North, Presidente do Comitê editorial Internacional do WSWS, escreve:

“a intenção óbvia do algoritmo de censura da Google é bloquear notícias que vossa companhia não quer divulgar e suprimir opiniões das quais vocês discordam. Listas negras da política não constituem um exercício legítimo de quaisquer prerrogativas da Google como empresa comercial. Trata-se de um grosseiro abuso do monopólio do poder. O que vocês estão fazendo é um ataque à liberdade de expressão”.

Sendo assim, entende-se que usar a força da lei para obrigar provedores a filtrar conteúdos, sem que haja uma equivalente obrigação legal de prestação de contas (accountability) a respeito das formas como tais filtros funcionam, é algo semelhante ao que a sabedoria popular chamaria de “entregar o ouro ao bandido”.

Publicado em 4 de junho de 2018.