"É preciso que o usuário comum seja educado em redes sociais e entenda a gravidade de se compartilhar qualquer conteúdo, sem filtro"

A profusão de mentiras na campanha do presidente americano Donald Trump, nos EUA, e no referendo do Brexit foi determinante para o termo pós-verdade ser alçado a palavra do ano pelo dicionário Oxford, em 2016. No Brasil, as eleições presidenciais de 2018 consolidaram o termo fake news em rodas de conversas das mais diferentes classes sociais e etárias. Nesse ambiente, vem surgindo no país um novo tipo de serviço, o dos checadore de informação. A Lupa, primeira agência de notícias do Brasil a se especializar em "fact-checking" acompanha diariamente o noticiário, buscando corrigir informações imprecisas e divulgar dados corretos. O serviço de verificação é vendido a outros veículos de comunicação e também publicado no próprio site da agência.

Para Chico Marés, checador e produtor de conteúdo da Agência Lupa, há duas formas, dentro do jornalismo, de se combater a falsificação ou o uso inadequado de dados públicos. A primeira é a transparência quanto à origem dos dados. A segunda é o contexto no qual esses dados foram produzidos. "É possível contar uma mentira utilizando-se apenas de informações verdadeiras", pontua. 

Chico participa, ao lado de Fábio Vasconcellos, professor da ESPM e da UERJ, e de Cecília Olliveira, jornalista do The Intercept Brasil e criadora da plataforma de dados sobre violência armada Fogo Cruzado do 2º Seminário de Estudos Críticos em Informação, Tecnologia e Organização Social, com o tema "A dimensão ética do jornalismo de dados". O encontro, organizado pelo grupo de pesquisa Escritos, tem entrada gratuita e acontece no dia 3 de julho, a partir das 14h, no Auditório Ministro João Alberto Lins e Barros (Prédio do CBPF, Rua Lauro Muller 455 - Botafogo, Rio de Janeiro).

O jornalista conversou com o Escritos sobre a importância da transparência e a necessidade de que a checagem de fatos siga padrões éticos. Confira a entrevista! 

Para ver a programação completa  do seminário e se inscrever, acesse: https://bit.ly/2Y8aCzM. 

Por Talita Figueiredo


Neste ecossistema de hiperinformação e num mundo cada vez mais polarizado politicamente, o uso de dados falsos muitas vezes tem como objetivo atacar a democracia e privilegiar grupos políticos. A rápida evolução da tecnologia e a facilidade de manuseio de aplicativos muito intuitivos, aliada ao surgimento de uma geração cada vez mais conectada, faz com que se torne cada vez mais fácil forjar dados e vídeos. Neste domingo, reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que uma das maiores preocupações na campanha americana é a produção de vídeos falsos (deep fake). Como combater a propagação de notícias falsas com a sofisticação da produção das mesmas?


Chico Marés: Dentro do jornalismo, vejo duas formas essenciais de se combater a falsificação ou o uso inadequado de dados públicos. A primeira é a transparência: cabe ao jornalista, sempre que possível, ser absolutamente transparente quanto a origem dos dados utilizados no combate à desinformação.

A internet, ao contrário dos meios do século 20, permite que o jornalista forneça acesso direto a relatórios e bases de dados utilizadas na construção de uma reportagem. Isso permite um grande ganho na confiabilidade do material veiculado. Um conteúdo se torna muito mais crível por um leitor não partidarizado quando retirado diretamente de fontes confiáveis de informação, como o IBGE, por exemplo. Poder mostrar isso é um ganho considerável.

Apesar de isso parecer relativamente trivial para meios nascidos já digitais, há uma certa resistência da imprensa tradicional em aderir a esses protocolos de transparência. Portanto, é uma discussão ainda relevante no meio jornalístico.

A segunda é a contextualização. Nem sempre a desinformação circula através de dados flagrantemente falsos. É possível contar uma mentira utilizando-se apenas de informações verdadeiras, seja pela retirada das informações de contexto, pela criação de falsas correlações ou pela omissão de fatos importantes. Nesses casos, é papel do jornalista explicar e traduzir ao leitor o contexto nos quais esses dados foram produzidos.

Por fim, é importante ponderar que a prática jornalística só nos leva até um determinado ponto no combate à desinformação. Atualmente, as redes sociais são o principal ambiente de troca de informação e, portanto, há de existir uma preocupação sobre o desempenho desses conteúdos dentro desses ambientes. O que circula mais, a informação ou a desinformação? Como fazer para ganhar essa corrida? Como atingir o leitor mais vulnerável a esse tipo de conteúdo? São preocupações prementes que, muitas vezes, acabam sendo ignoradas pelos jornalistas.

Há, ainda, a responsabilidade das próprias empresas de tecnologia, como o Facebook, o Twitter, etc. É importante, ao mesmo tempo, construir pontes e cobrar uma atuação mais dura dessas empresas no combate à desinformação. Atualmente, algumas empresas já têm projetos com esse objetivo. Cito, especificamente, o Third Party Fact-Checking Program, do Facebook, do qual a Lupa participa atualmente. Esse programa visa encontrar conteúdos falsos circulando na plataforma e reduzir seu alcance, para evitar que ele se dissemine. Iniciativas desse tipo são fundamentais para o sucesso do combate à desinformação.

 
É possível capacitar o usuário comum da rede para que se torne mais competente ao lidar no cotidiano com esse ambiente de pós-verdade?

Chico Marés: Não só é possível, como é necessário. A circulação de desinformação pela web depende justamente de usuários que compartilhem e acreditem em conteúdos falsos. Portanto, é preciso que o usuário comum seja educado em redes sociais, entenda a gravidade de se compartilhar qualquer conteúdo sem qualquer filtro e tenha uma noção básica de alguns elementos fundamentais da verificação para saber quando está diante de uma mentira. Também é fundamental que pessoas que lidem diretamente com problemas causados pela desinformação recebam uma capacitação mais aprofundada.

Atualmente, temos o projeto Lupa Educação, que visa justamente atuar nesse problema. Realizamos oficinas de checagem para jornalistas e outros profissionais que lidam, cotidianamente, com notícias falsas. Nas eleições, por exemplo, ensinamos técnicas de checagem e verificação para funcionários da Justiça Eleitoral. Também realizamos oficinas voltadas para estudantes de Ensino Médio e Superior, além de produzir conteúdos educativos sobre desinformação e checagem, como o projeto FakeouNews. 


A Lupa faz parte da rede mundial de checadores International Fact-Checking Network do Poynter Institute e, por isso, segue um código de ética e passa por auditorias independentes. Como a dimensão ética entra no debate da checagens de notícia? 


Chico Marés: A checagem de fatos depende de padrões éticos similares, porém distintos do jornalismo tradicional. Há uma necessidade intrínseca de um distanciamento do objeto analisado, visto que uma confusão entre quem disse e o que é dito pode, em última instância, prejudicar determinada análise. Ainda que isso exista no jornalismo convencional, é natural que um veículo parta de um determinado posicionamento editorial, que tenha visões já estabelecidas sobre o mundo que marquem suas pautas, seu enfoque e sua agenda. No caso da checagem de fatos, isso é necessariamente prejudicial, visto que o objeto é a veracidade do fato em si. Sendo assim, um viés de confirmação ou de negação é extremamente prejudicial para uma análise mais precisa.

A IFCN, entidade internacional à qual a Lupa é membro verificado, serve para estabelecer uma série de critérios técnicos para que esses padrões éticos possam replicados por diferentes veículos em escala global, em cenários tão distintos quanto o Reino Unido e a Turquia. Exige-se transparência em relação a quem produz os conteúdos, e dessas pessoas é exigido absoluto apartidarismo, em relação ao financiamento do veículo, em relação à metodologia e à política de correção e em relação às fontes utilizadas. Os veículos creditados passam por auditoria periódica e podem ser descredenciadas caso descumpram os critérios de transparência exigidos.