"Devemos aprender a aprender, conhecer ou julgar no ambiente digital"

Professor de filosofia no Departamento de Pedagogia da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), Miguel Ángel Pérez Álvarez é especialista em cibernética, metacognição, aprendizado e mediação tecnológica na Educação. 

Foi integrante da comunidade virtual Mistica (Metodologia e Impacto Social das Tecnologias de Informação e Comunicação na América), que reuniu, entre 1999 e 2004, na América Latina e no Caribe, pesquisadores, docentes, ativistas de desenvolvimento social, estudantes, funcionários públicos e membros de organismos internacionais e multilaterais atuantes no campo do uso social das tecnologias da informação e comunicação (TIC) para o desenvolvimento, com particular atenção à internet. Em seu ápice, chegou a agregar mais de 400 pessoas, originárias de mais de 30 países. 

Fundou, ainda, a Rede Latinoamericana de Ética da Informação (RELEI), um dos desdobramentos do Primeira Conferência Regional Latino-Americana e Caribenha sobre Infoética no Ciberespaço, realizada pela Unesco em Santo Domingo, em 2006. 

Em entrevista ao Escritos, o pesquisador discute os atuais desafios para a Ética em Informação, como fake news e vigilância de dados, e defende a educação como arma para combater a desinformação. Confira!

Por Ana Lúcia Borges e Talita Figueiredo

No documento “Trabajando la internet con una visión social” (2002), os membros da Comunidade Virtual Mistica mostraram uma visão crítica sobre os usos sociais da internet. Eles viam a internet como “uma ferramenta apta para criar e reforçar redes humanas”, que poderia “melhorar os processos de desenvolvimento humano existentes” e “gerar novos conhecimentos” a partir das informações fornecidas. Mas também acreditavam que a geração de novos conhecimentos incorporando a Internet como uma ferramenta de informação e comunicação não é um processo simples: haveria a necessidade de descobrir novas habilidades e capacidades que nos permitissem aproveitar melhor essa ferramenta. Se não fizermos estas reflexões, diziam, “corremos o risco de ficar com um monte de informações, sem alcançar as mudanças almejadas, paralisados pela quantidade incontrolável de dados”. O senhor acredita que, sob estes aspectos, as discussões na Mistica foram visionárias, antecipando as mudanças às quais assistimos hoje no ambiente digital?

Miguel Ángel Pérez Álvarez: A visão estratégica de centenas de especialistas gerou uma perspectiva e sem dúvida a inteligência coletiva permitiu antecipar os problemas e as possibilidades da rede. Argumentei [na época] que a mediação tecnológica possibilitaria a construção de novos conhecimentos se contribuísse para o desenvolvimento de habilidades metacognitivas. Eu tinha razão e a aceitação que tive entre os especialistas da Mistica favoreceu o desenvolvimento do meu trabalho acadêmico posterior até a publicação do meu livro em 2015.

Para fins de comparação, que mudanças o senhor identifica em seu pensamento e em seus estudos sobre a Ética em Informação, no final do século passado, quando conheceu Mistica, e hoje, depois de quase 20 anos?

Miguel Angel Pérez Álvarez: Os grupos mais retardatários, ao descobrirem que a rede se autorregula e é um espaço de liberdade baseado na ética, abusaram e construíram um espaço para o engano, a interferência com base em interesses de grupo, e sectarismo, linguagem de ódio e mentira (fake news). O uso de vídeos falsos para destruir reputações tem sido um exemplo. Recentemente, a Samsung mostrou como você pode criar um vídeo falso a partir de algumas fotos de um personagem. Realmente assustador. A manipulação política tem sido impressionante.

Em uma entrevista de 2004, o senhor mencionou que a comunidade virtual Mistica lhe deu a oportunidade de se conectar com “pessoas que têm um interesse comum, continuar escrevendo sobre o tópico das tecnologias da informação e até mesmo começar a escrever uma tese sobre comunidades virtuais de aprendizagem como um espaço diferente para aprender”. Após 15 anos, quais foram os principais impactos da Mistica para sua pesquisa em filosofia? 

Miguel Angel Perez Alvarez: Bem, escrevi uma tese sobre o assunto a ser publicada pela Universidade do México e também escrevo ocasionalmente no jornal sobre o tema. Na televisão, não muito tempo atrás, fui entrevistado para falar em inteligência artificial e implicações éticas. Então, [a ética em informação] tem sido uma questão fundamental para mim e a colaboração com o grupo Mistica me ajudou de uma forma muito importante. Em 2015, publiquei com a Fundación Telefonica e a editoria Ariel, em conjunto com Luis Germán Rodríguez Leal, o livro “Ética multicultural y sociedad en red”, que é parte do trabalho derivado da colaboração com o grupo Mistica. 


Na “Primeira Conferência Regional Latino-Americana e Caribenha sobre Infoética no Ciberespaço”, que aconteceu em Santo Domingo de 6 a 9 de dezembro de 2006, a privacidade e a proteção de dados já eram debatidas, dez anos antes do escândalo da Cambridge Analytica. O senhor poderia descrever o panorama da evolução dos debates sobre proteção e vigilância de dados? 

Miguel Ángel Pérez Álvarez: Parece-me que o esforço mais importante está sendo realizado pelo Instituto Eletrônico de Engenharia Elétrica dos Estados Unidos, que recentemente publicou um texto sobre o desenho ético de sistemas autônomos e da robótica. Com a coordenação de Jared Bielby [presidente do International Center for Information Ethics (ICIE), fundado por Rafael Capurro] e John Havens, integro um grupo de filósofos que está escrevendo o capítulo sobre ética clássica em um livro, e recuperamos uma abordagem que nos permite pensar sobre a perspectiva ética na relação entre homens e máquinas. 

Os documentos que discutem a infoética mencionam principalmente a Declaração dos Direitos Humanos, em especial o artigo 19, que afirma que todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e expressão. Que novos desafios são impostos à liberdade de expressão em tempos de fake news? 

Miguel Ángel Pérez Álvarez: Parece-me que há uma responsabilidade crescente entre quem divulga informações na rede para verificar a autenticidade do que é publicado. A responsabilidade, isto é, uma perspectiva ética, exige necessariamente a autorregulação e a revisão dos conteúdos publicados e divulgados. A maioria dos meus críticos afirma que é impossível basear a ação social na ética, que é necessário um marco regulatório e legal, mas os fenômenos que ocorrem na rede são tão vastos que apelar para a construção de uma legislação global soa mais utópico do que pensar no desenvolvimento do critério moral dos seres humanos, aproveitando a existência da rede.

Alguns documentos mencionam os aspectos legais da ética; em outros observamos que não há uma concepção formal do uso ético da informação no ciberespaço. Houve uma evolução em torno do conceito de ética desde o surgimento das TIC até hoje? 

Miguel Ángel Pérez Álvarez: Argumento desde o início que o desenvolvimento do critério moral é basicamente um processo educacional. As escolas não contribuem para o desenvolvimento de critérios morais, mas moralizam, apenas estabelecem escalas de valores que as crianças memorizam. Mas o desenvolvimento de habilidades intelectuais tem a ver com fornecer ou gerar as condições pelas quais as crianças reflitam sobre seus próprios atos e desenvolvam autonomia. É necessário que os educadores recebam uma formação baseada nas ideias de Piaget e Kohlberg, de modo que os sistemas educacionais contribuam para o desenvolvimento da autonomia, da autorregulação. Confio nessa visão utópica.

O início da discussão na Unesco sobre a infoética teve um forte componente orientado ao acesso à informação. Hoje vivemos uma epidemia de hiperinformação e o fenômeno da desinformação. Como enfrentar esse desafio?

Miguel Ángel Pérez Álvarez: Com educação. A maioria de nós não tem o hábito de verificar se o que aparece na mídia é algo próximo da verdade. Nas redes sociais isso é ainda mais complexo por causa do imediatismo. Agora, o desafio educacional não foi totalmente compreendido. Os sistemas educacionais nunca entenderam que a tecnologia não é uma ferramenta, mas um mediador do novo modelo cognitivo. Conhecemos com a  tecnologia; ela é um “andaime” e sua mediação muda a maneira como aprendemos. Para desenvolver a autonomia, devemos ser educados com essa mediação e aprender a aprender, conhecer ou julgar no ambiente digital.

Uma das recomendações da Declaração de Santo Domingo é “melhorar o acesso à educação e à formação para diferentes setores da sociedade, em torno das TIC”. Quais ações educacionais o senhor sugere para formar o que podemos chamar de competência em informação, tendo em mente a perspectiva crítica?

Miguel Ángel Pérez Álvarez: Uma de minhas experiências mais relevantes coletadas pela Fundación Ceibal em um livro sobre Juventude e Cultura Digital conta como eu usei a programação de robôs nas aulas para desenvolver o critério moral. Esse tipo de experiência é muito importante para crianças e jovens. Nós, educadores, devemos projetar dezenas de experiências com esse mesmo sentido.

Publicado em 12 de setembro de 2019.