"Como violência é um assunto delicado, a preservação da identidade dos usuários é algo prioritário"

O Fogo Cruzado é um laboratório de dados sobre violência armada que agrega e disponibiliza dados e informações através de um aplicativo para tecnologia mobile combinado a um banco de dados. Por meio de uma plataforma digital colaborativa, ele registra a incidência de tiroteios e a prevalência de violência armada nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de Recife. Os dados divulgados pela plataforma podem servir a propósitos distintos. De um lado, o resultado imediato: servem para alertar as pessoas sobre possíveis situações de risco, de forma que elas possam tomar decisões sobre seus percursos e seu cotidiano. De outro, a plataforma vai além, ao compilar dados que permitem ao poder público diagnosticar problemas causados pela violência armada e, com isso, criar políticas públicas capazes de impactar na qualidade de vida da população.

Cecília Olliveira, jornalista do The Intercept Brasil e criadora da plataforma de dados, destaca que há uma preocupação do FC tanto na proteção dos dados de quem colabora com a plataforma, mas também na forma de comunicar os dados colhidos. Segundo ela, a ideia é não alimentar o estigma da violência, não fazer julgamentos, nem usar termos de cunho "estritamente moral", como "militante", "bandido", "suspeito". 

A jornalista participa, ao lado de Fábio Vasconcellos, professor da ESPM e da UERJ, e de Chico Marés, checador e produtor de conteúdo da Agência Lupa, do 2º Seminário de Estudos Críticos em Informação, Tecnologia e Organização Social, com o tema "A dimensão ética do jornalismo de dados". O encontro, organizado pelo grupo de pesquisa Escritos, tem entrada gratuita e acontece no dia 3 de julho, a partir das 14h, no Auditório Ministro João Alberto Lins e Barros (Prédio do CBPF, Rua Lauro Muller 455 - Botafogo, Rio de Janeiro). Para ver a programação completa  do seminário e se inscrever, acesse: https://bit.ly/2Y8aCzM. 

Ao Escritos, Cecília contou um pouco sobre o trabalho do FC, que há dois meses abriu seus dados em uma plataforma de consulta aberta à população. Confira a entrevista! 

Por Talita Figueiredo

O Fogo Cruzado divulga dados que são produzidos por pessoas comuns, que relatam os casos de violência, num país onde o risco de perseguição policial é real. Há uma preocupação a respeito da privacidade e a proteção dos dados dessas pessoas?

Cecília Olliveira: O Fogo Cruzado é uma plataforma que trata de um assunto sensível e caro a todos: violência armada urbana. Como violência é um assunto delicado, que pode colocar as pessoas em risco, a preservação da identidade dos usuários é algo prioritário. Quando o usuário se cadastra no app não lhe é solicitado nome, foto, telefone ou endereço. As notificações recebidas pelo sistema – enviadas pelo usuário via aplicativo – não chegam com identificação pessoal. Nossos sistemas – app, API e site – têm segurança digital reforçada (auditada de tempos em tempos para checar possíveis vulnerabilidades e evitá-las) para evitar ataques.

Nesse ambiente de hiperinformação e desinformação, a plataforma faz alguma tipo de checagem para saber se a ocorrência é verdadeira – livre  erros, mal-entendidos, comunicação falsa ou mal intencionada? Há acompanhamento para do desdobramento dessa ocorrência, como por exemplo, se houve vítimas?

Cecília Olliveira: Além de receber notificações de usuários diretamente via aplicativo, a equipe de gestão de dados do Fogo Cruzado recebe informações diretas de parceiros que atuam in loco. Neste caso só são consideradas fontes conhecidas, com as quais já existe relacionamento prévio, como coletivos, comunicadores e moradores ativos localmente. A equipe do Fogo Cruzado também adiciona às bases de dados as informações recolhidas via imprensa e canais das autoridades policiais. Vale notar que as notificações publicadas no mapa do Fogo Cruzado no site são sinalizadas de acordo com suas fontes. 

Quando chega a notificação de um tiroteio/disparo de arma de fogo, esta informação não é automaticamente publicada no mapa e nas redes sociais. Imediatamente, a equipe de gestão de dados cruza a notificação com scripts e filtros desenvolvidos para agregar informações em redes sociais sobre disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio de Janeiro e Recife. Desta forma, é possível saber quem, quando e onde está se falando sobre o assunto de forma a cruzar informações sobre um mesmo tiroteio/disparo de arma de fogo. Após tal verificação, a notificação é postada nas redes e o incidente fica em registro público no site e app.

Nós descartamos informações que são incompletas, repetidas ou que não foram confirmadas pela nossa equipe. Quando identificamos notificações desse tipo, elas são bloqueadas no nosso sistema e descartadas. Ou seja, elas não constam no mapa, aplicativo ou nas estatísticas divulgadas. Desde o início do funcionamento do Fogo Cruzado em julho de 2016 até o final de 2018 a taxa de descarte de registros foi de 16% das notificações recebidas. 

A plataforma é um banco de dados acessível e aberto. Há uma preocupação com a dimensão ética na coleta, divulgação e uso desses dados pelo Fogo Cruzado e por terceiros?

Cecília Olliveira: O Fogo Cruzado é uma fonte primária de informação e como qualquer base de dados, serve para subsidiar estudos, matérias, textos etc. de terceiros. Ou seja, não há como – e não cabe a nós – controlar a narrativa de uso destas informações.  Por outro lado, nós do FC temos preocupações com a forma de comunicar destes dados – tanto nas redes sociais quanto site e imprensa. Não usamos palavras como "bandido", "meliante", "suspeito" por considerar que estas palavras têm cunho estritamente moral – de julgamento – não tendo nenhum valor do ponto de vista jornalístico. 

Também não fazemos alertas do tipo "evite a região", em respeito a pessoas que não podem evitar suas casas, seus empregos, suas escolas. Optamos por não contribuir com o reforço do estigma de algumas regiões. Damos a informação do tipo "Tiros no Morro do Santo André e na Favela da 48, em #Bangu (10:45)". A pessoa vai decidir se ela quer ou não passar ali pelas proximidades e como quer fazer. Mesmo quando avisamos que uma via está fechada em decorrência de um tiroteio, não dizemos pra evitar a área. Isso é uma decisão que o leitor/usuário deve tomar.

Publicado em 26 de junho de 2019.