“O jornalismo de dados estimula uma certa pedagogia dos dados para o grande público”

Em recente artigo para o jornal "O Globo", Fábio Vasconcellos, professor da ESPM e da UERJ, especialista em jornalismo de dados, abordou os impactos do uso das tecnologias de comunicação no sistema político. Segundo ele, "imersos nos efeitos positivos das redes, pouco discutimos um ponto fundamental desse universo. As redes digitais não são agentes neutros, como canais que transferem informação de uma ponta a outra, sem interferir no que sabemos, como sabemos e como orientamos nossas escolhas. São tecnologias com dono, sistemas operacionais próprios, algoritmos e performances de audiências que impactam a visibilidade e a proximidade dos participantes, no caso representantes e representados". 

Ao lado de  Cecília Olliveira, jornalista do The Intercept Brasil e criadora da plataforma de dados sobre violência armada Fogo Cruzado, e de Chico Marés, checador e produtor de conteúdo da Agência Lupa, Vasconcellos será um dos palestrantes do 2º Seminário de Estudos Críticos em Informação, Tecnologia e Organização Social, com o tema "A dimensão ética do jornalismo de dados". O encontro, organizado pelo grupo de pesquisa Escritos, tem entrada gratuita e acontece no dia 3 de julho, a partir das 14 h,  no Auditório Ministro João Alberto Lins e Barros (Prédio do CBPF, Rua Lauro Muller 455 - Botafogo, Rio de Janeiro). 

Em conversa com o site do Escritos, Fábio Vasconcellos compartilhou reflexões sobre o papel estratégico do jornalismo de dados no atual cenário de desinformação e comentou a respeito do uso ético da informação nessa prática inovadora de produção noticiosa. Para conferir a programação completa  do seminário e se inscrever, acesse: https://bit.ly/2Y8aCzM. Confira a entrevista!

Por Ana Lúcia Borges

Num cenário tomado pela hiperinformação, pela desinformação e pela ampla circulação de fake news, o jornalismo de dados apresenta papel estratégico, por apresentar inovações na forma de tratar e apresentar as notícias em comparação ao jornalismo tradicional. Que contribuições esta prática apresenta com vistas a aprimorar a experiência do público que consome produtos noticiosos?

Fábio Vasconcellos: O jornalismo de dados nasce multidisciplinar. Não temos como fazer jornalismo de dados sozinhos, ele exige a participação de diferentes profissionais na produção do seu conteúdo. Então, a meu ver, o jornalismo de dados, ao utilizar análise de dados, narrativa e design da informação, amplia as possibilidades de estimular a atenção e o engajamento do público com um tipo de conteúdo que, de fato, não é trivial. Fazer dessa experiência algo também lúdico, com cores, movimento, narração e, claro, informação consistente é um tremendo desafio para essa prática. Tem um ganho aí que, para mim, é o que mais me encanta no jornalismo de dados. Ele de certa forma estimula uma certa pedagogia dos dados para o grande público. Esse é um ganho incrível porque permite que, através da experiência com esse conteúdo, o leitor também aprenda mais a lidar com conteúdo baseado em dados.

As últimas eleições presidenciais ficaram marcadas como as "eleições dos meios digitais". O aplicativo de mensagens WhatsApp teve papel decisivo na circulação de informações propagadas pelos candidatos. No Twitter, veio à tona o uso de robôs como motores das campanhas na mobilização dos cidadãos e na definição das pautas a serem discutidas pela sociedade. Em que medida, nesse cenário, o jornalismo de dados pode ser um entendido como um aliado do cidadão na detecção de notícias falsas e na identificação de informações relevantes para sua tomada de decisão?

Fábio Vasconcellos: O fenômeno das notícias falsas, como sabemos, não é novo. O que é novo é a capacidade de disseminação que ele ganhou no universo digital. De um para um, e depois de muitos para muitos. Mas tenho tido muita cautela com a premissa de que as notícias falsas têm produzidos os efeitos arrasadores como apregoam. As pesquisas que foram realizadas até aqui apontam para um efeito muito lateral em processos eleitorais. Ainda é cedo para afirmar que é isso mesmo? Claro. Por isso, a cautela. Quem consome informação política abundante são os mais engajados, e são os que menos mudam de percepção política quando recebem uma informação contrária ao seu candidato. Por outro lado, quem tem maior probabilidade de mudar uma percepção política baseada em notícia falsa são os menos engajados, ou seja, quem menos está consumindo informação. Há um paradoxo aqui de ordem psicológica que a afirmação de que as fake news mudaram tudo não leva em conta. Mas me preocupa, por exemplo, notícias falsas no campo da saúde ou de qualquer outro boato não político. Essas informações podem levar muitas pessoas a deixarem de tomar uma vacina, por exemplo, porque ouviram dizer que a vacina mata.

Bem, diante desse cenário, diria que o jornalismo de dados associado ao jornalismo computacional pode desenvolver técnicas de verificação em massa, o que poderia ser um tremendo ganho para a batalha de desmentir informações falsas. O modelo hoje ainda é muito artesanal, o que dificulta demais lutar contra as ondas de desinformação. É um primeiro passo? Sem dúvida, e tem os seus méritos, mas é ínfimo o seu poder de desmentir diante do poder de disseminação em massa de mentiras. Do ponto de vista democrático, isso preocupa. Mas do ponto de vista da ciência, ainda há muitas interrogações.

O uso ético da informação perpassa toda a prática do jornalismo de dados, desde a apuração inicial até forma de apresentação da informação para o público. Acredita que, na prática, os jornalistas à frente desta forma de produção de notícias refletem sobre a dimensão ética de sua atuação?

Fábio Vasconcellos: Em geral, as rotinas do jornalismo diário limitam e muito o tempo de reflexão sobre as nossas práticas. Matar um leão todo dia ou quase a toda hora pode não coincidir com o tempo necessário para a reflexão mais aprofundada. Não estou dizendo que o jornalismo toma decisão sem refletir consequência, estou dizendo que, talvez, o tempo dessa reflexão e os elementos que considerávamos nessas reflexões talvez não sejam mais suficientes. E o ambiente digital ao mesmo tempo que impulsiona a produção de conteúdos mais interessantes, também coloca sobre a mesa do jornalismo um tempo de tomada de decisão ainda mais curto, com menos recursos financeiros e lutando com milhões de outras fontes que passaram a poder publicar seus conteúdos nas redes. 

Tenho uma visão do jornalismo de dados mais próximo da ciência do que do jornalismo em si. Isso significa que prefiro um tempo maior para analisar e compreender as relações dos dados, a relevância de uma pauta do que a urgência da publicação com análises insuficientes, ou com destaque para o que é desvio e não para o que é padrão, explicação. Há uma contradição dentro do jornalismo de dados. Jornalismo busca desvio, análise de dados busca padrões ou, em alguma medida, mudanças que sejam significativas do ponto de vista para entendermos um fenômeno social, político ou cultural. Agora é preciso fazer um elogio às gerações mais novas do jornalismo de dados. Elas têm lidado melhor com a ideia de transparência, no sentido de expor seus métodos e, em alguns casos, até disponibilizar os dados que usaram. Em ciência, isso é permitir que uma análise seja testada por outra pessoa. Isso é muito bom.

Publicado em 24 de junho de 2019.